terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Prudência e sinceridade

As questões que giram em torno da consciência do indivíduo são recorrentes em discussões atuais. Afinal, como podemos definir a palavra “indivíduo”? Segundo o dicionário Houaiss, o indivíduo pode ser pensado como alguém em relação a uma coletividade. A subjetividade, por sua vez, é definida como algo do sujeito, pessoal; que não é concreto, exato ou objetivo. Pensando nessas duas definições, reflexões podem ser levantadas: como essas questões permeiam a consciência do indivíduo? Qual o lugar da subjetividade dentro da coletividade, pensando na noção do eu?
O caráter permanente desse questionamento pode ser visto como sendo universal. Entretanto, com diferentes entendimentos de indivíduos em diferentes sociedades, tais questionamentos partem de premissas diferentes, resultando em estudos diferentes. Além disso, podemos inferir que esse caráter seja também atemporal, nos permitindo pensar sobre eles por meio de uma perspectiva diacrônica, com uma reflexão que vai desde as primeiras análises sobre o indivíduo e a subjetividade. Para melhor entendermos a historicização da noção de indivíduo, conduzimos a reflexão ao Renascimento, período no qual categorias morais foram repensadas. Focamos, então, em John Martin e em seu ensaio “Inventing Sincerity, Refashioning Prudence: The Discovery of the Individual in Renaissance Europe”. Em seu texto, Martin visa destacar a descoberta do indivíduo, e para tal examina os conceitos morais de sinceridade e prudência.
O ensaio visa ressaltar a importância da descoberta do indivíduo não apenas pela perspectiva da alta cultura – arte, música, literatura e história intelectual –, que era o foco de Burckhardt, mas também pelo entendimento da história social e política. Para observar a Renaissance self-fashioning, Martin faz uma análise que destaca a formação histórica dos Reinassances selves, com o objetivo de redefinir as categorias morais referentes à sinceridade e à prudência. Martin destaca que é importante analisar a mudança das noções medievais para as noções renascentistas com relação do inner self para entender o que se tornou a consciência do indivíduo renascentista e o novo sentido da noção de eu. Dois conceitos são analisados: o Renaissance fashioning da virtude da prudência e a emergência do ideal de sinceridade.
 Em seu ensaio, Martin discute que prudência, do latim providere (“prever”), segundo Aristóteles, é a razão prática que guia a escolha no processo ético de tomada de decisões. Na Idade Média, era vista como sabedoria cristã. De acordo com Tomás de Aquino, a prudência é um princípio de ordem, considerada a virtude mais necessária para a vida humana. Não importa apenas o que o homem faz, mas também como ele faz: deve ser uma escolha certa, e não um impulso. No início do século XIX, Maquiavel rompe a ligação entre os ideais de prudência e ética. A ênfase na deliberação e a separação entre prudência e ética coloca novo foco na subjetividade humana.
A sinceridade, por sua vez, possui muitos significados. Antes do Renascimento, era vista como algo puro ou inalterado. Tornou-se uma categoria moral a partir do século XIX, a partir de um ímpeto moral crescente para tornar sentimentos e convicções conhecidas. A sinceridade passou a ser descrita como a relação entre a percepção dos homens e mulheres de seus internal selves (pensamentos, sentimentos e convicções) e o mundo mais amplo.
Ao revisitar a discussão de sinceridade quanto na discussão de prudência, Martin analisa um novo entendimento do ser humano. Destacam-se autores como Lutero e Michel de Montaigne. Para exemplificar, podemos mencionar uma consideração de Montaigne sobre prudência feita em seu livro Ensaios, em que há um conflito entre a sinceridade do eu, o que o sujeito gostaria de fazer; e a prudência, que de algum modo impede a projeção completa de sua subjetividade perante a sociedade:
“A própria essência da minha forma é a comunicação, é a manifestação: sou todo extrovertido e em evidência, nascido para a companhia e a amizade. A solidão que amo e que prego é, principalmente, trazer para mim minhas afeições e meus pensamentos: restringir e estreitar, não meus passos, mas meus desejos e minhas preocupações, recusando a solicitude externa e fugindo mortalmente da servidão e da obrigação, e não tanto da multidão dos homens como da multidão dos negócios. Para falar a verdade, meu isolamento mais me estende e me expande para fora: com mais gosto me atiro nos negócios do Estado e no universo quando estou sozinho. No Louvre e na multidão me fecho e me contraio dentro de minha pele. A multidão impele-me a entrar em mim. E jamais converso comigo mesmo mais loucamente, mais licenciosa e privadamente que nos lugares de respeito e prudência cerimoniosa. Nossas loucuras não me fazem rir, mas sim nossas sapiências. Meu temperamento não me torna inimigo da agitação das cortes:aí passei parte da vida, e fui feito para portar-me alegremente com os grandes grupos, contanto que seja por intervalos, e na minha hora. Mas esse frouxo julgamento de que falo força-me à solidão.” (p. 255)[1]
A consciência do indivíduo foi, em grande escala, o resultado de mudanças fundamentais nas visões de ética dos humanistas renascentistas e os reformistas protestantes. A partir de um fashioning de identidades religiosas, pessoais e sociais, era possível, segundo Lutero, delinear duas virtudes de sinceridade e prudência distintas no discurso renascentista, com negociações no dia-a-dia sobre qual papel deveria ser exercido.
Martin discute que o indivíduo passou a projetar uma representação fiel da sua subjetividade, levando em consideração seus sentimentos, preocupações e crenças. Ao mesmo tempo, a representação do indivíduo diante da corte e da sociedade representava também o inner self, uma vez que homens e mulheres precisavam negociar seus papéis sociais. Portanto, a noção de indivíduo torna-se única e complexa. Montaigne argumentou ainda em favor de uma coexistência dessas virtudes, mas se teria assim uma impossibilidade de um discurso sincero, pois havia um protocolo a ser seguido que impediria uma projeção completa da subjetividade, conforme o exemplo acima. É importante notar que, mesmo sendo uma reflexão sobre um período renascentista, as questões são bastante atuais. Ao pensarmos na sociedade atual, acreditamos que seja de extrema importância o levantamento da discussão da sinceridade e da prudência.
Podemos perceber e discutir os conceitos de sinceridade e prudência em My Mind to Me a Kingdom Is, de Sir Edward Dyer:
MY mind to me a kingdom is;
  Such present joys therein I find,
That it excels all other bliss
  That earth affords or grows by kind:
Though much I want that most would have,
Yet still my mind forbids to crave.

No princely pomp, no wealthy store,
  No force to win the victory,
No wily wit to salve a sore,
  No shape to feed a loving eye;
To none of these I yield as thrall;
For why? my mind doth serve for all.

I see how plenty surfeits oft,
  And hasty climbers soon do fall;
I see that those which are aloft
  Mishap doth threaten most of all:
They get with toil, they keep with fear:
Such cares my mind could never bear.

Content I live, this is my stay;
  I seek no more than may suffice;
I press to bear no haughty sway;
  Look, what I lack my mind supplies.
Lo, thus I triumph like a king,
Content with that my mind doth bring.

Some have too much, yet still do crave;
  I little have, and seek no more.
They are but poor, though much they have,
  And I am rich with little store;
They poor, I rich; they beg, I give;
They lack, I leave; they pine, I live.

I laugh not at another’s loss,
  I grudge not at another’s gain;
No worldly waves my mind can toss;
  My state at one doth still remain:
I fear no foe, I fawn no friend;
I loathe not life, nor dread my end.

Some weigh their pleasure by their lust,
  Their wisdom by their rage of will;
Their treasure is their only trust,
  A cloakèd craft their store of skill;
But all the pleasure that I find
Is to maintain a quiet mind.

My wealth is health and perfect ease,
  My conscience clear my chief defence;
I neither seek by bribes to please,
  Nor by deceit to breed offence:
Thus do I live; thus will I die;
Would all did so as well as I!


Glossário:
Bliss: bem-aventurança                                 Thrall: prisioneiro
Surfeit: excesso                                              Hasty: apressado
Mishap contratempo                                      Toil: trabalho
Haughty: arrogante

Ao longo de todo o poema, percebemos uma distinção entre tais questões. Por um lado, encontramos a voz do falante, que percorre todo o poema afirmando que ser consciente de si mesmo é o suficiente para ele. O falante se vê rico em conhecimento, e só busca o mesmo. É em si mesmo que o falante encontra felicidade, como podemos perceber em “My mind to me a kingdom is;/ Such presente joys therein I find,/ That it excels all ohter bliss” e em “Content I live, this is my stay”. Logo em seguida, temos “ I seek no more than may suffice”, em que há uma forte tensão entre a sinceridade e a prudência. De acordo com o falante, qual seria o propósito de uma busca a felicidade no mundo exterior se já a encontra dentro de si? Portanto, temos uma impossibilidade da prudência em prol de uma sinceridade completa.
 Por outro lado, vemos os outros membros da sociedade sendo representados como pessoas que prezam luxúria e riqueza material. Tais riquezas, portanto, os colocariam como membros respeitosos na sociedade. Entretanto, o falante os aponta como membros pobres, já que não buscam uma clareza de si mesmos. É possível perceber tal diferença entre os indivíduos em:
“Some have too much, yet still do crave;
  I little have, and seek no more.
They are but poor, though much they have,
  And I am rich with little store;
They poor, I rich; they beg, I give;
They lack, I leave; they pine, I live.”

O falante, ao se referir aos outros indivíduos da sociedade, os enxerga como indivíduos não completos, uma vez que buscam uma ascensão social. Portanto percebemos, segundo o poema, que a ganância para se encaixar nos moldes da sociedade bloqueia a possibilidade de uma sinceridade completa. A tensão entre prudência e sinceridade, dessa forma, permeia durante todo o poema.
Mesmo com todo o embate dos conceitos de sinceridade e prudência ao longo do poema, também podemos nos perguntar se o falante se apresenta como um indivíduo único mesmo. Apesar de se dizer consciente de si mesmo, o falante não vai além de tal afirmação, e pode acabar seguindo uma linha de senso comum. Se assim o faz, poderia estar se afastando mais da sinceridade do que percebemos em uma primeira leitura. Todo esse questionamento, dessa forma, nos indica que o conceito de indivíduo não é resolvido.
Os ideais de prudência e sinceridade e a tensão entre eles tornou possível a percepção do ser humano como um indivíduo complexo e auto-consciente. Tal percepção traz, dentre outros, os questionamentos levantados no início: como podemos enxergar um indivíduo na sociedade atual? Com a tecnologia disponível e o conhecimento que essa traz na sociedade do século XXI, estaríamos nós cientes da nossa própria consciência? Se sim, nos encontramos a caminho de um maior encontro com a sinceridade. Mas o que nos afasta de tal clareza? Nesse caso, nos encaminhamos para uma construção de identidade dentro do conceito de prudência. Percebemos, desta maneira, que essas são perguntas atemporais e sempre atuais. Podemos enxergar tal dilema também através das construções sociais. Como podemos ter uma noção de indivíduo se estamos sempre nos colocando dentro de categorias sociais? Ao sermos sinceros, seremos aceitos em sociedade? Como lidar com as virtudes e os sentimentos? É preciso discutir, portanto, se existe a noção do indivíduo dentro da sociedade no mundo atual, uma vez que essa noção é condição para a sinceridade, que, por sua vez, é refreada pela prudência.





[1] Exemplo retirado da tradução brasileira feita por Rosa Freire D’Aguiar: “Os Ensaios – Uma seleção”, disponível para download em http://pensamentosnomadas.com/livros-de-michel-de-montaigne-em-49385

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