Renascimento é o
nome geralmente atribuído ao período de transição entre a Idade Média e a Modernidade.
Esse termo foi cunhado inicialmente pelos próprios homens letrados do período,
e uma das possíveis definições de Renascimento é a encontrada no dicionário
Merriam-Webster, que define o Renascimento como “o período na história europeia
entre os séculos XIV e XVII quando houve um novo interesse pela ciência e pela
arte e literatura antiga, especialmente na Itália.”[i] Tal acepção destaca
a Itália, local também conhecido como o “berço do Renascimento”, como centro da
produção cultural e científica na época. Entretanto, conforme essa mesma
definição ressalta, o Renascimento foi um período decisivo para a história da
Europa como um todo. Apesar de a arte renascentista italiana ser a mais icônica
e relembrada, o intercâmbio entre as diferentes regiões da Europa era intenso
na época, diversos lugares do continente tiveram produções científicas e
artísticas no período renascentista.
Da mesma forma que o
Renascimento não ocorreu exclusivamente na Itália, ele não se caracteriza
apenas pelo crescente interesse pelas artes e ciências. Existem diversas
teorias e acepções que abordam o período a partir de diferentes perspectivas, e
por essa razão, esta época também passou a ser chamada alternativamente de
“Início da era moderna” (”Early modern period” em inglês). Essa expressão,
segundo o professor e pesquisador britânico Terence Cave, é mais abrangente e
“cria novas perspectivas de diversos tipos de história intelectual, cultural e
social”[ii], indo além da
definição do Renascimento que, como já foi mencionado anteriormente, geralmente
se resume a questões culturais. Nas palavras de Cave, o termo “Renascimento”
representa a “construção de uma cultura elitista ao invés de um fenômeno
histórico global”[iii]. Já “Início da era
moderna” corresponde a “perspectivas históricas que podem ser consideradas como
programaticamente igualitárias”[iv], na medida em que
não focam apenas na elite, no cânone, no padrão. Além disso, segundo Cave, o
termo “Início da era moderna” estabelece uma conexão do período com a era
moderna em si, permitindo estudá-lo do ponto de vista da modernidade. Em suas
palavras, “investigar o início da era moderna é inquirir as raízes, as origens
ostensivas, da nossa própria ‘modernidade’, e assim submeter as ideologias
modernas, através de um laço histórico, a uma crítica radical.”[v]
Além da associação
do período com a Itália e com as artes, existiram outros acontecimentos que os
estudiosos do período conhecido como Renascimento ou “Início da era moderna”
costumam destacar como transformações que caracterizaram o momento histórico na
Europa. A invenção da imprensa, por exemplo, proporcionou a disseminação do
conhecimento e de notícias, e, consequentemente, a autonomia de pessoas que
antes dependiam daqueles que possuíam acesso aos originais. Outros dois fatores
decisivos na transição entre a Idade Média e a modernidade foram a nova organização
política do poder, com a formação dos Estados absolutistas e a reforma. Esses
dois fatores romperam com a antiga organização social e com antigas formas de
poder, colocando o indivíduo em evidência ao exaltar a figura de um Rei ao e
descentralizar a comunicação com o divino, dando às pessoas a possibilidade de fazerem
isso por si mesmas. Além disso, o humanismo, que pode ser caracterizado como
uma nova atitude em relação à antiguidade clássica, retomando seus
conhecimentos e seus valores como a valorização do ser humano, também costuma
ser apontado como relevante na transição entre a Idade Média e a Era Moderna.
Mas será que esses
acontecimentos realmente representaram uma ruptura com a Idade Média como se
costuma dizer? Será que houve outros fatores que marcaram ou proporcionaram uma
mudança de atitude do homem e de organização da sociedade europeia em
geral? Porque será que, no senso comum,
o período conhecido como Renascimento é tão fortemente associado a uma ruptura
completa com a Idade Média em direção à modernidade, com a Itália e com um
grande desenvolvimento cultural? Será que é assim mesmo? Será que não há nada
além disso?
Muito do que se diz
sobre o Renascimento até hoje está relacionado de alguma forma com o trabalho
do historiador suíço especializado em arte e cultura Jacob Burckhardt
(1818-1879), que escreveu em 1860 um livro chamado A cultura do Renascimento na Itália (tradução de Sérgio Tellaroli, 1991). Esse livro é dividido em seis
grandes capítulos: “O Estado como obra de arte”, “O desenvolvimento do
indivíduo”, “O redespertar da antiguidade”, “O descobrimento do mundo e do
homem”, “A sociabilidade e as festividades” e “Moral e religião”. Ao longo desses capítulos, Burckhardt explora
diversos fatos que considerou característicos do período, entre os quais os já
citados Estados Absolutistas, o humanismo, as mudanças na relação das pessoas
com a religião, o resgate dos valores da antiguidade clássica e principalmente
o desenvolvimento artístico-cultural, focando especialmente nas esferas sociais
da nobreza, do clero, da burguesia e dos artistas. Além disso, Burckhardt
também apresentou em seu livro a ideia da “descoberta do indivíduo” no
período do Renascimento, que continua sendo debatida até os dias atuais.
Segundo Burckhardt,
“Na Idade Média, ambas as faces da consciência – aquela voltada
para o mundo exterior e a outra, voltada para o interior do próprio homem –
jaziam, sonhando ou em estado de semivigília, como que envoltas por um véu
comum. De fé, de uma prevenção infantil e de ilusão tecera-se esse véu, através
do qual se viam o mundo e a história com uma coloração extraordinária; o homem
reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, família
ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira
vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um
tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas desse mundo.
Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus
poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se
reconhece como tal.”[vi]
Para ele, esse é um
fenômeno quase que exclusivamente italiano, que, “à mesma época, não tem
paralelo no Norte, ou não se revela de maneira semelhante.”[vii] Assim, ao longo de
seu livro, Burckhardt recorre a exemplos de artistas italianos canônicos, como
Dante, por exemplo. Segundo ele, “o grandioso poema de Dante teria sido
impossível em qualquer outra parte, simplesmente pelo fato de que o restante da
Europa encontrava-se ainda sob aquele encanto da raça; para a Itália, o sublime
poeta tornou-se, já pela plenitude de sua individualidade, o arauto nacional
por excelência de seu tempo.”[viii]
Vemos, então, que a
hipótese de Burckhardt sobre o Renascimento e a “descoberta do indivíduo” se refere
principalmente à Itália e se baseia em seu cânone artístico e cultural. Essa
hipótese serviu como ponto de partida para os estudos de diversos outros
pesquisadores do Renascimento na atualidade. Em Inventing Sincerity, Refashioning Prudence : The Discovery of the
Individual in Renaissance Europe (1997), o historiador estadunidense John
Martin afirma que a tese de Burckhardt “continua a estimular o que há de mais
criativo entre os estudos acadêmicos sobre o fim da Idade média e o início da
história moderna da Europa.”[ix] Alguns desses
estudos vieram a contribuir com a hipótese de Martin sobre a “ascensão do
indivíduo”, enquanto outras vieram a acrescentar detalhes ou até mesmo
refutá-la. Conforme afirma Martin, as ideias de Burckhardt têm sido alvo de
críticas por analisarem a época como se houvesse uma homogeneidade social e
cultural, de uma perspectiva elitista, além de considerar o indivíduo como algo
externo e independente da história, de uma forma essencialista. Entretanto,
como segue dizendo Martin, “modelos filosóficos, antropológicos e literários
recentes do indivíduo transformaram nosso entendimento da pessoa humana de tal
forma que não é mais possível basear nossa análise das origens do
individualismo nas suposições humanísticas tradicionais que Burckhardt tomou
como certas.”[x] Segundo Martin,
alguns estudiosos se opõem, inclusive, à ideia da “ascensão do indivíduo”,
preferindo focar seus estudos na experiência coletiva. Por isso, ele apresenta
algumas visões alternativas à hipótese da “descoberta do indivíduo” do
historiador suíço, levantadas por estudiosos do que veio a ser chamado de “Novo
historicismo”, para os quais o individualismo seria não algo inerente ao ser
humano, mas sim uma construção social.
Estudamos algumas
dessas teorias e as discutiremos com mais detalhes em breve. Uma das teorias
que abordaremos é a de Thomas Greene, que em 1968 escreveu “The Flexibility of
the Self in Renaissance Literature. Nesse texto, Greene aborda a questão da
flexibilidade da capacidade do ser humano de moldar o seu “eu” como uma
característica do período do Renascimento. Outra teoria alternativa à hipótese
de Burckhardt sobre a “descoberta do indivíduo” é a do “Renaissance
self-fashioning”, do historiador literário estadunidense Stephen Greenblatt,
proposta em seu livro de mesmo nome, de 1980. Para Greenblatt, existiu no
Renascimento a possibilidade do homem de modelar a sua personalidade, mas esse
ato não era completamente livre, uma vez que existiam poderes como o Estado
e Igreja que controlavam a autonomia das
pessoas. Estudaremos também a proposta do próprio John Martin em Inventing Sincerity, Refashioning Prudence :
The Discovery of the Individual in Renaissance Europe , de 1997, texto no
qual ele fala sobre como a mudança dos conceitos de sinceridade e prudência
influenciaram a individualização do homem no Renascimento. Para observar tais
conceitos de acordo com a proposta de Martin, discutiremos o poema My Mind to
Me a Kingdom Is, de Sir Edward Dyer, poeta inglês do século XVI.
[i] No original em inglês “the period of European history
between the 14th and 17th centuries when there was a new interest in science
and in ancient art and literature especially in Italy”. Disponível
em <http://www.merriam-webster.com/dictionary/renaissance>, acesso em
21/11/2016.
[ii]
No original em ingles “creating new perspectives
for various kinds of intellectual, cultural and social history”. (CAVE, 2006, p.
12). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[iii] No original em inglês “a
construction of elite culture rather than a global historical phenomenon”. (CAVE, 2006, p. 12). Disponível em
<https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[iv] No original em inglês
“historical perspectives which may be considered as programmatically
egalitarian”. (CAVE, 2006, p. 12). Disponível em
<https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[v] No original em inglês “To
investigate the early modern period is to enquire after the roots, the
ostensible origins, of our own ‘modernity’, and thus to subject modern
ideologies, via a historical loop, to a radical critique”. (CAVE, 2006, p.
13). Disponível em <https://muse.jhu.edu/article/198408/pdf>, acesso em 21/11/2016.
[vi] BURCKHARD, Jacob. A Cultura do
Renascimento na Itália. Trad. de Sérgio
Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. P. 145
[ix]
No original em inglês “[…] Continues
to stimulate much of the most creative scholarship in late medieval and early
modern European history.” (MARTIN, 2000, p. 12).
[x] No original em inglês “recent
philosophiical, anthropological and literary models of the individual have so
transformed our understanding of the human person that it is no longer possible
to base our analysis of the origins of the individualism on the traditional
humanistic assumptions that Burckhardt take as given” (MARTIN, 2000, p. 12).
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